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Aula terceiro ano.

Português contemporâneo - Diálogo; reflexão e uso - Volume 3 Carolina Dias Vianna, Christiane Damien e Willian Cereja, da Editora Saraiva.

Página 30

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Nós chorámos pelo Cão Tinhoso

Nós chorámos pelo Cão Tinhoso para a Isaura; para o Luís B. Honwana

Foi no tempo da oitava classe, na aula de português. Eu já tinha lido esse texto dois anos antes mas daquela vez a estória me parecia mais bem contada com detalhes que atrapalhavam uma pessoa só de ler ainda em leitura silenciosa – como a camarada professora de português tinha mandado. Era um texto muito conhecido em Luanda: «Nós matámos o Cão Tinhoso». Eu lembrava-me de tudo: do Ginho, da pressão-de-ar, da Isaura e das feridas penduradas do Cão Tinhoso. Nunca me esqueci disso: um cão com feridas penduradas. Os olhos do cão. Os olhos da Isaura. E agora de repente me aparecia tudo ali de novo. Fiquei atrapalhado. A camarada professora seleccionou uns tantos para a leitura integral do texto. Assim queria dizer que íamos ler o texto todo de rajada. Para não demorar muito, ela escolheu os que liam melhor. Nós, os da minha turma da oitava, éramos cinquenta e dois. Eu era o número cinquenta e um. Embora noutras turmas tentassem arranjar alcunhas para os colegas, aquela era a minha primeira turma onde ninguém tinha escapado de ser alcunhado. E alguns eram nomes de estiga violenta. Muitos eram nomes de animais: havia o Serpente, o Cabrito, o Pacaça, a Barata-daSibéria, a Joana Voa-Voa, a Gazela, e o Jacó, que era eu. Deve ser porque eu mesmo falava muito nessa altura. Havia o É-tê, o Agostinho-Neto, a Scubidú e mesmo alguns professores também não escapavam da nossa lista. Por acaso a camarada professora de português era bem porreira e nunca chegámos a lhe alcunhar. Os outros começaram a ler a parte deles. No início, o texto ainda tá naquela parte que na prova perguntam qual é e uma pessoa diz que é só introdução. Os nomes dos personagens, a situação assim no geral, e a maka do cão. Mas depois o texto ficava duro: tinham dado ordem num grupo de miúdos para bondar o Cão Tinhoso. Os miúdos tinham ficado contentes com essa ordem assim muito adulta, só uma menina chamada Isaura afinal queria dar protecção ao cão. O cão se chamava Cão Tinhoso e tinha feridas penduradas, eu sei que já falei isto, mas eu gosto muito do Cão Tinhoso. Na sexta classe eu também tinha gostado bué dele e eu sabia que aquele texto era duro de ler. Mas nunca pensei que umas lágrimas pudessem ficar tão pesadas dentro duma pessoa. Se calhar é porque uma pessoa na oitava classe já cresceu um bocadinho mais, a voz já está mais grossa, já ficamos toda hora a olhar as cuecas das meninas «entaladas na gaveta», queremos beijos na boca mais demorados e na dança de slow ficámos todos agarrados até os pais e os primos das moças virem perguntar se estamos com frio mesmo assim em Luanda a fazer tanto calor. Se calhar é isso, eu estava mais crescido na maneira de ler o texto, porque comecei a pensar que aquele grupo que lhes mandaram matar o Cão Tinhoso com tiros de pressão-de-ar, era como o grupo que tinha sido escolhido para ler o texto. Não quero dar essa responsabilidade na camarada professora de português, mas foi isso que eu pensei na minha cabeça cheia de pensamentos tristes: se essa professora nos manda ler este texto outra vez, a Isaura vai chorar bué, o Cão Tinhoso vai sofrer mais outra vez e vão rebolar no chão a rir do Ginho que tem medo de disparar por causa dos olhos do Cão Tinhoso. O meu pensamento afinal não estava muito longe do que foi acontecendo na minha sala de aulas, no tempo da oitava classe, turma dois, na escola Mutu-Ya-Kevela, no ano de mil novecentos e noventa: quando a Scubidú leu a segunda parte do texto, os que tinham começado a rir só para estigar os outros, começaram a sentir o peso do texto. As palavras já não eram lidas com rapidez de dizer quem era o mais rápido da turma a despachar um parágrafo. Não. Uma pessoa afinal e de repente tinha medo do próximo parágrafo, escolhia bem a voz de falar a voz dos personagens, olhava para a porta da sala como se alguém fosse disparar uma pressão-de-ar a qualquer momento. Era assim na oitava classe: ninguém lia o texto do Cão Tinhoso sem ter medo de chegar ao fim. Ninguém admitia isso, eu sei, ninguém nunca disse, mas bastava estar atento à voz de quem lia e aos olhos de quem escutava. O céu ficou carregado de nuvens escurecidas. Olhei lá para fora à espera de uma trovoada que trouxesse uma chuva de meia-hora. Mas nada. Na terceira parte até a camarada professora começou a engolir cuspe seco na garganta bonita que ela tinha, os rapazes mexeram os pés com nervoso miudinho, algumas meninas começaram a ficar de olhos molhados. O Olavo avisou: «quem chorar é maricas então!» e os rapazes todos ficaram com essa responsabilidade de fazer uma cara como se nada daquilo estivesse a ser lido. Um silêncio muito estranho invadiu a sala quando o Cabrito se sentou. A camarada professora não disse nada. Ficou a olhar para mim. Respirei fundo. Levantei-me e toda a turma estava também com os olhos pendurados em mim. Uns tinham-se virado para trás para ver bem a minha cara, outros fungavam do nariz tipo constipação de Cacimbo. A Aina e a Rafaela que eram muito branquinhas estavam com as bochechas todas vermelhas e os olhos também, o Olavo ameaçou-me devagar com o dedo dele a apontar para mim. Engoli também um cuspe seco porque eu já tinha aprendido há muito tempo a ler um parágrafo depressa antes de o ler em voz alta: era aquela parte do texto em que os miúdos já não têm pena do Cão Tinhoso e querem lhe matar a qualquer momento. Mas o Ginho não queria. A Isaura não queria. A camarada professora levantou-se, veio devagar para perto de mim, ficou quietinha. Como se quisesse me dizer alguma coisa com o corpo dela ali tão perto. Aliás, ela já tinha dito, ao me escolher para ser o último a fechar o texto, e eu estava vaidoso dessa escolha, o último normalmente era o que lia já mesmo bem. Mas naquele dia, com aquele texto, ela não sabia que em vez de me estar a premiar, estava a me castigar nessa responsabilidade de falar do Cão Tinhoso sem chorar. – Camarada professora – interrompi numa dificuldade de falar. – Não tocou para a saída? Ela mandou-me continuar. Voltei ao texto. Um peso me atrapalhava a voz e eu nem podia só fazer uma pausa de olhar as nuvens porque tinha que estar atento ao texto e às lágrimas. Só depois o sino tocou. Os olhos do Ginho. Os olhos da Isaura. A mira da pressão-de-ar nos olhos do Cão Tinhoso com as feridas dele penduradas. Os olhos do Olavo. Os olhos da camarada professora nos meus olhos. Os meus olhos nos olhos da Isaura nos olhos do Cão Tinhoso. Houve um silêncio como se tivessem disparado bué de tiros dentro da sala de aulas. Fechei o livro. Olhei as nuvens. Na oitava classe, era proibido chorar à frente dos outros rapazes. Ondjaki, In Os da minha rua, Lisboa, Caminho, 2007

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Sobre o autor

Ondjaki

Ondjaki nasceu em Luanda, Angola, em 1977. Interessa-se pela interpretação teatral e pela pintura (duas exposições individuais, em Angola e no Brasil). Participou em antologias internacionais. Escreve para cinema e correalizou um documentário sobre a cidade de Luanda (Oxalá cresçam Pitangas, 2006). É membro da União dos Escritores Angolanos. É licenciado em Sociologia. Recebeu no ano 2000 uma menção honrosa no prêmio António Jacinto (Angola) pelo livro de poesia Actu Sanguíneu. Em 2005 o seu livro de contos E se amanhã o medo obteve os prêmios Sagrada Esperança (Angola) e António Paulouro (Portugal). (Disponível em: http://www.nova cultura.de/0708literatrip.php.

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Intertextualidade

Influência de um texto sobre outro novo texto.

Cão Tinhoso: metáfora de uma nação “Nós matamos o Cão Tinhoso” é o nome de um conto do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana. O conto foi publicado no livro de mesmo nome, na época em que Moçambique era colônia portuguesa, durante a ditadura de Salazar, em Portugal. Quando Honwana escreveu a obra, a única que publicou, encontrava-se na prisão, por causa de seus textos de contestação ao regime e da participação na Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). Depois que Moçambique alcançou a independência, Honwana ocupou o cargo de ministro da Cultura do país. O conto “Nós matamos o Cão Tinhoso” conta a história de um cão já bastante idoso e debilitado que é morto a tiros de espingarda de pressão por um grupo de crianças, a mando do administrador e do veterinário do povoado. A única criança que gostava do cão e lhe dava comida e carinho era a menina Isaura. O narrador da história, Ginho, também gostava do animal, mas, pressionado pelos amigos, também decide matar o cão, porém na última hora se arrepende, sem conseguir alterar a situação. Segundo alguns críticos, a história do cão tinhoso é uma metáfora do povo moçambicano antes da revolução, ou seja, o cão representa a condição do homem moçambicano sem consciência política, impotente, inferiorizado e subserviente.

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Mãos a obra.

Pegue o livro didático e faça as questões

1- Logo no início, o texto faz referência a outro conto, “Nós matamos o Cão Tinhoso”, do escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana. a. Quem é o narrador na história de Ondjaki? b. Há quanto tempo ele já tinha lido o texto de Honwana? c. Levante hipóteses: Por que, na primeira vez, a história lhe parecera “mais bem contada”?

5- No início do conto, há a seguinte dedicatória: “Para a Isaura. Para o Luís B. Honwana”. Como você sabe, Isaura é personagem do conto “Nós matamos o Cão Tinhoso” e Luís B. Honwana é o autor do conto. Levante hipóteses: Por que uma personagem de ficção e um escritor real são homenageados na dedicatória?

Recontando. Reconte o conto “Nós matamos o Cão Tinhoso”, de Luís B. Honwana, a partir de uma destas sugestões: • Utilizando as informações sobre o conto apresentadas neste capítulo, acrescente outras personagens e outros fatos aos da história. • Leia o conto integral, disponível na Internet, e, depois, conte a história. Não copie partes do texto e conte a história toda, mas de forma resumida, em um texto que tenha de 30 a 40 linhas.

7- O texto foi escrito em português angolano. Nele, é possível encontrar palavras que são usadas exclusivamente em Angola ou em Angola e Portugal. Identifique algumas dessas palavras, que ilustram a variedade moçambicana ou lusitana de nossa língua.

Recontando. Reconte o conto “Nós matamos o Cão Tinhoso”, de Luís B. Honwana, a partir de uma destas sugestões: • Utilizando as informações sobre o conto apresentadas neste capítulo, acrescente outras personagens e outros fatos aos da história. • Leia o conto integral, disponível na Internet, e, depois, conte a história. Não copie partes do texto e conte a história toda, mas de forma resumida, em um texto que tenha de 30 a 40 linhas.

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Aprenda mais

África portuguesa.

Os países africanos tiveram sua independência tardiamente, essa veio com esforço e resistência de seu povo. Assista o vídeo que segue.

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Arte como ferramenta política de resistencia.

Por Danilo Nunes*
Para a Página do MST

A cada dia torna-se mais urgente repensarmos o mundo pela ótica da diversidade cultural para que possamos compreender as formas, costumes, produção e necessidade dos povos.

É emergente o diálogo entre as culturas para construirmos um mundo mais sustentável, de igualdade social, direitos e liberdade, respeitando as diversidades.

Com base no dia 21 de maio que, está marcado no calendário da Organização das Nações Unidas o dia mundial da Diversidade Cultural para Diálogo e Desenvolvimento, instituído em sua assembleia geral no ano de 2002 após aprovação pela Unesco da Declaração Universal sobre Diversidade Cultural de 2001, precisamos reconhecer a necessidade de aumentar o potencial da cultura como meio de alcançar prosperidade, desenvolvimento sustentável e coexistência pacífica mundial.

Nós, seres humanos somos desde o momento em que somos inseridos na vida social, produtores de cultura. Aliás, somos a única espécie com essa capacidade, o que nos difere de todas as outras nos colocando na condição humana.

Somos capazes de voar sem ter asas, de atravessar o oceano sem ser peixe, de construir e destruir, de preservar os recursos naturais e/ou acabar com eles.

Somos por natureza, produtores de cultura, mas neste artigo quero abordar, com o intuito de reflexão, a forma simbólica da cultura: Arte.

A arte é a ferramenta cultural que tem a capacidade de comunicar a partir da própria experiência humana, trazendo à tona as condições sociais, econômicas e políticas do nosso planeta, assim como também é utilizada como instrumento de massificação pelo próprio sistema regente. Ela nos mostra uma capacidade inigualável de alienação dos povos, gerando as condições para a implantação e aceitação de sistemas que oprimem e colocam o ser humano na condição de explorador da própria espécie, assim como é capaz de nos libertar das amarras e do aprisionamento intelectual.

Foi a partir da cultura que descobrimos em nossa história a palavra Etnocentrismo, conceito utilizado para justificar todas as formas de exploração, invasão, colonização, escravidão e massacre das diferentes culturas.

Muitas vezes a arte foi utilizada como instrumento de segregação e divisão social, formando uma elite intelectual e econômica europeia que se autoproclamava melhor (culturalmente) do que povos intitulados bárbaros e selvagens, justificando e criando as condições para as invasões e retaliações.

A arte também é uma forte ferramenta de comunicação capaz de conscientizar a população e resistir, através de suas manifestações, denunciando e nos mostrando os verdadeiros sentidos e objetivos das ações das classes dominantes dentro do sistema capitalista e neoliberal.

Os (as) artistas se tornam agentes culturais de transformação social, capazes de levar a informação por meio da linguagem simbólica à lugares inacessíveis.

https://mst.org.br/2021/05/17/arte-ferramenta-de-resistencia-cultural/#:~:text=A%20arte%20tamb%C3%A9m%20%C3%A9%20uma,do%20sistema%20capitalista%20e%20neoliberal.

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Acordo ortográfico

Unificação da grafia!

O motivo principal deste acordo é promover a unificação ortográfica dos países que têm o português como língua oficial, os quais são: Brasil, Portugal, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.
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